por Gabriel Brito
Abro este texto avisando que o conteúdo que se segue é um relato jornalístico-pessoal, o que na verdade é uma simbiose inevitável, mas que admitida pode conferir menos leviandade ao que se subscreve. Trata-se de uma tentativa de analisar e tirar conclusões dos acontecimentos registrados no Morumbi, à saída do clássico entre São Paulo e Corinthians, mais especificamente da nova tarde de violência e estupidez no país da Copa de 2014.
O tema está em todas as manchetes desta segunda, reverbera na cidade toda e será abordado (e investigado?) à exaustão. Mesmo assim, creio agregar algo ao debate relatando minha experiência, ao lado de meu irmão, na epopéia a que nos propusemos viver neste domingo.
É realmente inevitável dissociar os fatos ao final do jogo com o clima criado, por todas as correntes, durante a semana. No meu ponto de vista, o São Paulo FC tem a mais relativa das culpas. Não avisou com grande antecedência que haveria a controvertida, mas legítima, divisão de torcidas em 90% a 10% e estranhamente construiu o setor dos visitantes ao lado da arquibancada onde se localiza a Independente, isto é, os torcedores tidos como mais temíveis. Por que não fazer o visitante no setor amarelo, sempre o menos povoado pelos são paulinos e com 100 metros de distância para suas organizadas?
Por sua vez, o Corinthians, em nova atitude demagógica de sua diretoria, esperneou e direcionou expressões como ‘egoísta’, ‘pequeno’ e ‘irresponsável’ aos seus pares tricolores. Digo assim, pois não é a primeira vez que Andrés Sanchez ‘joga para a torcida’. Ao lado de seu departamento de marketing, vem incorrendo em tal expediente desde o rebaixamento do clube, quando precisou limpar sua barra em relação à gestão anterior e levantar fundos para bancar a monumental dívida com que a quadrilha Dualib, da qual era parte, brindou o alvinegro. E para isso não foram poucas as campanhas publicitárias a exaltar o amor que o corintiano (e mais ninguém aparentemente) tem pelo seu time. Em suma, eles fizeram a dívida, mas como somos nós, a torcida, que pagaremos, é preciso adular-nos e fazer-nos esquecer todas as impropriedades cometidas ao longo dos últimos sei lá quantos anos (só crianças acham que não acontecia nada antes da era MSI). Por isso só a fiel não abandona, só a fiel é roxa pelo time e só a fiel comparece ao estádio na pior. Sem fazer comparações com outras torcidas, são verdades incontestáveis, mas para quem sempre seguiu o time não são novidades e pegam mal em momentos como esse, podendo soar como certo oportunismo também.
Outro capítulo à parte coube à imprensa. Aventou o clima de guerra, repercutindo em excesso declarações tolas da cartolagem, preferindo deixar os esquemas dos professores Mano e Muricy em segundo plano. Tratou a iminência dos distúrbios como alegoria, mas seu papel mais pernicioso na história só começaria a ser protagonizado no anoitecer do domingo e principalmente nas páginas de segunda-feira. Sendo o que resta de jornalismo esportivo compromissado com o seu público, a ESPN Brasil esteve em cima da pinta e logo abordou o assunto de forma realista, expondo que o que ocorrera à saída era culpa, e muita, da PM. Colocou seus repórteres para circular, falar com torcedores (sim, eles também podem ser entrevistados) e, aí sim, colher a posição oficial, das autoridades. Tendo praticado jornalismo, ficou fácil auferir que a responsabilidade da PM na confusão que vitimou dezenas de espectadores (não gado) era no mínimo razoável, o que arrastou alguns outros veículos a mudarem um pouco seu viés chapa-branca, de Diário Oficial da União, na hora de contar os fatos.
Entretanto, Arnaldo Ribeiro, da Placar e ESPN Brasil, foi certeiro. “Nós, jornalistas, devemos também mudar um pouco, acompanhar o que passam esses torcedores nas saídas de jogo, pois realmente não vivemos isso”. Não é preciso dizer muito mais. Quem lê a cobertura de tais acontecimentos sabe que nossa imprensa só sabe ouvir fontes oficiais (policiais, dirigentes e promotores, que, aliás, são a mais nova categoria que se vincula ao futebol) e a partir disso tira suas conclusões de gaveta. “Os marginais, sempre os marginais”, “Ah, essas organizadas”, “Ui, não vá nunca mais ao estádio”, enfim, nada se discute a fundo, não se cobra, permanentemente, punição aos culpados quando um verdadeiro crime ocorre e se estigmatiza completamente o torcedor que ainda mantém sua paixão e faz questão de exercê-la. O jornalista Flavio Prado, que trabalha na TV aberta, se referiu aos cerca de 41 mil pagantes do clássico do paulistão do ano passado como ‘imbecis’. Isso pelo simples fato de terem ido ao Morumbi naquela tarde de Adriano em campo e do único clássico entre ambos em 2008, pois “quem vai ao estádio hoje em dia é isso: imbecil ou marginal. Quem não é de organizada, essa turma que só vai pra brigar, é acobertador de marginal”. Uma volta aos bancos da faculdade seria salutar, pois lhes faria lembrar que um mandamento mais do que básico, obrigatório, da profissão é apurar fatos e versões para além das fontes oficiais e oficiosas.
No entanto, tal preceito não deve constar na redação do Diário de São Paulo, para dar um exemplo. Pois o que lá se lê é o supradito, é a simbolização do trabalho midiático em tais circunstâncias. Apenas fontes oficiais. E mais: ouviram um torcedor alvinegro – anônimo – que imputou a causa da briga aos Gaviões e um morador do bairro que acusou os torcedores de promover um arrastão. E a partir desta altura do texto, torna-se útil ter estado lá.
Fiquei no setor ‘dos 90 reais’, isto é, um pouco mais vazio que o outro corralito alvinegro, logo, mais cômodo. Esperamos os tais 40 minutos para sair, calmamente. Um pouco antes de escurecer, começou a chover fino, o que irritou o pessoal ali presente. Então, começamos a pedir liberação para deixar a arquibancada. No que fomos atendidos pronta e tranquilamente. Comecei a descer a rampa, cheguei à saída e lá já me deparei com os ônibus do comboio de nossa torcida estacionados ao lado do estádio, no contorno da sede social, repleta de policiais, como não deixaria de ser. De repente, ouve-se um estouro, que naquele momento não causou grande preocupação em quem já havia saído. Entrei ao lado do meu irmão e mais um amigo no ônibus, a esperar pela partida. O clima era ameno e parecia que ainda tardaríamos um pouquinho a sair. Mais alguns minutos, ouvem-se mais uns 3 ou 4 estouros. Outro curto lapso de tempo e começam a voltar para os ônibus corintianos, aos montes, manquitolando, queixando-se de dores, quase todos nas pernas. Pensamos: “Bom, enfim, o pau comeu”. Pensávamos que era algo do tipo Gaviões x Polícia mesmo, e por alguma razão gratuita. E a partir daí, o trato dos oficiais mudou: começaram a ordenar aos motoristas que ligassem os ônibus e a tocar os torcedores para dentro deles, muitos ainda sem localizar o veículo que os trouxera. Uma clara e até ali inexplicável mudança de comportamento. E eu já estava contentíssimo de ter visto o esquema de escolta da caravana ter corrido bem na ida, quando saímos do Bom Retiro.
Empreendemos a saída do Morumbi pela Giovanni Gronchi, por onde também chegáramos. Sem explicação, fomos parados ali novamente, esperando outra meia hora, aproximadamente, para retomar o trajeto de volta para a quadra dos Gaviões, que de acordo com a própria PM é a melhor maneira de ir a jogos nessas circunstâncias de parcela minoritária do público. Eu e meu irmão tomamos a decisão de ir com os Gaviões por conta própria, pois já havíamos calculado que, ainda que descamisados, indo sozinhos e pelos trajetos normais correríamos risco de tomar algum susto, para dizer o mínimo. E como era evidente que a caravana das organizadas seria escoltada até a medula, concluímos ser mais seguro ir ao Morumbi com eles. Após essa nova espera, finalmente, por volta de 8 da noite, começamos de fato a ir embora. Contornamos o terminal João Dias, entramos na Marginal Pinheiros e nos mandamos – ainda houve tempo para uma pedrada na janela de nosso veículo, sem maiores consequências.
Portanto, que Gaviões e Polícia tenham se pegado é praticamente uma certeza, resta saber os motivos. A gaguejante entrevista do coronel Velozo foi insegura, seca e contraditória. Como pode ser visto no Blog Vai Lateral, as explicações não se sustentam.
“A torcida do Corinthians partiu pra cima da patrulha da PM, composta por apenas 5 policiais e 1 tenente, e esta revidou”. Eram, segundo o comandante, cerca de 500 torcedores. Primeiro de tudo, suspeita a conta de apenas 5 policiais para fazer a evacuação da torcida. (observação de quem foi ao jogo: eram muito mais) Depois, estranho que 500 torcedores tenham fugido de 5 policiais, mesmo estando estes atirando “apenas 3 bombas de efeito moral”, conta o blog, que ainda expõe o relato de outro torcedor.
“Começou a chover muito, a torcida decidiu se abrigar da chuva nos corredores embaixo da arquibancada e começou a aglomerar a torcida inteira, que chegou até perto dos portões. Aí entra a Tropa de Choque, eles nem perguntaram o que acontecia, viram a massa e já começaram a lançar bombas, balas de borracha, dar borrachada. E o resultado foi que ficaram mais de 3 mil pessoas espremidas num corredor, engolindo gás de pimenta. A PM começou a recuar todo mundo num blocão esmagador, era um verdadeiro rolo compressor humano se esmagando e entre os torcedores se ouvia os gritos de mulheres e até crianças sendo esmagadas, foi uma cena realmente chocante. E assim foi prosseguindo até que a massa espremida foi caindo de costas pela única saída de visitantes. Foi feito um mutirão para ir resgatando as pessoas dali do meio e o resultado é que tinha até mulher grávida desmaiada e entre os muitos feridos, vários com fraturas expostas. E como sempre as organizadas foram as culpadas e a PM está de parabéns”, conta o torcedor, não identificado mas que lá deixou um depoimento.
A versão oficial apresentada foi contradita pelo mesmo Velozo, ao final da improvisada coletiva. “Houve um estouro no estacionamento, os torcedores vieram em nossa direção e a partir disso nos defendemos”. Pois é, fica claro que não se sabia a origem do estouro, nem por parte dos policiais, nem dos torcedores. E mesmo assim o comandante admitiu (na frente de todas as câmeras!) que a reação natural e inicial foi a de revidar, partir para cima de volta, sem nem saber de quem era a culpa, já que até o fim da conversa com os repórteres o policial não afirmou de onde partira esse primeiro estouro. Portanto, a versão de ataque dos torcedores corintianos prova-se falaciosa, ao menos confrontando todas as versões apresentadas, inclusive a oficial. E os instintos de violência da PM ficam novamente desnudados. A propósito, alguém chegou a ver as matérias de capa de janeiro das revistas Caros Amigos e Le Monde Diplomatique? Pois é, lá fica exposto o quão ilibada e realmente irretorquível tem sido a conduta de nossas polícias, ficando fácil compreender o porquê de nossa grande mídia se satisfazer tão facilmente com os pareceres das autoridades.
Quanto ao arrastão, é uma rotunda inverdade. Até porque mal havia ‘o que arrastar’. Cercados que estávamos por policiais, que eram muitos como já dito, não havia a menor possibilidade de se empreender uma ação do tipo. Pelo fato de não haver espaço físico sobrando, de lá estar um contingente enorme de PMs e de nem sequer existir algum ‘alvo’ disponível para vitimizar, se assim decidissem os presumidos marginais.
Antes mesmo de chegar à sede da torcida alvinegra, recebi pencas de ligações de gente que queria saber como estavam as coisas. Meu pai, do Rio de Janeiro, começou a acompanhar o noticiário e já ia nos informando de tudo. E já àquela altura ele me dissera: “O PVC tá dizendo que a culpa é da Polícia”. Bom, a novidade em questão era ver gente da imprensa rapidamente apontando o dedo para o lado oficial da história, não o culpado em si. Pareceu uma luz no fim do túnel ouvir isso, talvez dessa vez a repercussão fosse outra, pensei. Hoje, como não poderia deixar de ser, tratei de acompanhar a repercussão. Parte da mídia de fato se sensibilizou com o lado do torcedor (quem sabe a ESPN não impõe um agenda-setting ‘do bem’), mas outra parte insiste em sua crença inabalável nas autoridades e instituições oficiais de nossa sociedade.
Como foi o caso do citado Diário de S. Paulo. Confesso que a partir disso perdi a vontade de continuar folheando outros jornais, que adoram destacar em fotos colossais as partes trágicas do jogo. “Mas é importante falar disso, é de claro interesse social”, responderão todos. Nenhum imbecil discorda. No entanto, tenho dificuldades em acreditar na vontade de resolver nossas mazelas sociais por parte de um veículo de mídia que na mesma capa coloca uma chamada para matéria sobre o casal recordista em tempo de beijo debaixo d’água e que dedica páginas inteiras a ‘celebridades’ que ganham a vida exibindo peito, bundas e abrindo pernas, inclusive em público. Fico aqui concatenando pensamentos e me sinto mortificado de saber que minha pobre cabecinha é incapaz de compreender o interesse social de tais questões.
Pensando bem, é tudo previsível mesmo, parte do circo. Pois como a grande imprensa tem abordado a crise econômica, senão pelo ponto de vista dos empresários, isto é, de seus causadores, que assim ficam livres para expressar quase sem contraponto suas versões dos fatos, sustentando assim a onda de demissões que já assola o país? E no Paraisópolis, como é a cobertura, senão um mero diariozinho de acontecimentos, evitando-se cuidadosamente entrar em explicações sociológicas dos fatos? E em Gaza, como foi a abordagem, senão pelo massacrante ponto de vista israelense, ignorando o fato de a fundação do Estado de Israel ser um ato de ocupação em si desde os primórdios e também omitindo o fato de que há muito tempo o Hamas aceita o direito a existir do Estado israelense e negociar de acordo com as fronteiras de 1967? Por sorte, saí há pouco tempo da faculdade, o que me faz ter fresquinho na mente a premissa inegociável de que o ‘jornalismo é, antes de tudo, uma função social’. Pois se com assuntos tão mais sérios que o futebol a mídia já esbanja sua (ir)responsabilidade social, o que pensar de uma mera partidinha de Campeonato Paulista? O jornalismo de vassalagem está em voga há muito tempo e não somos nós corintianos que estamos “desmascarando” alguma coisa.
O balanço que se pode fazer, obviamente, é negativo. Mas ao mesmo tempo reflito e vejo que não houve novidades. Ainda mais sendo visitante. Quem entende do que falo, sabe: o tratamento, Brasil afora, de torcidas forasteiras é absurdo, violentíssimo, provocador e humilhante. Fui ao Rio de Janeiro em 2007 ver um jogo contra o Flamengo e não deu outra. Fomos esculachados pela PM carioca, cujo linguajar é inacreditável, do começo ao final do jogo. Na entrada, fomos obrigados a entrar correndo, enquanto os ‘servidores públicos’ (um teórico sinônimo de polícia) giravam seus cassetetes para apressar a entrada, se assim pode ser dito. Lá dentro do Maraca, na hora da saída, ficamos esperando o momento da liberação, enquanto os oficiais tentavam a todo instante fustigar torcedores, através de xingamentos e ordens brutais, como proibição de ir ao banheiro. Isso até conseguirem e poderem se comprazer em conjunto espancando alguém, coisa que fizeram e testemunhei. Em outra visita ao Rio, meu irmão foi ver a semifinal da Copa do Brasil no moderníssimo, dispendioso e superfaturado Engenhão, de onde voltou com escoriação no braço, pois levou uma cacetada quando deixava o banheiro, o que aconteceu com muitos e muitos outros torcedores. Aliás, um vídeo-denúncia chegou a circular no YouTube, com duração de 8 minutos, com diversas atitudes dos oficiais registradas. Houve outras filmagens, mas muitas das pessoas que as fizeram simplesmente tiveram suas máquinas digitais ou celulares tomados e destruídos pela PM carioca. Além de meu irmão, ouvi esse mesmo relato de outras pessoas presentes.
Portanto, o que ocorreu no Morumbi foi apenas mais uma dose da mesma mistura que vem matando o futebol brasileiro nas arquibancadas. Polícia despreparado e/ou violenta, torcidas nem sempre dispostas a cooperar com a ordem e uma mídia ávida por relatar tragédias – basta ver que quase nada se falou da partida, com ou sem razão; cada qual com sua abordagem, mas não se falou. A grande diferença é que dessa vez ficou complicadíssimo lamber a bota da PM e referendar de primeira sua versão. Que sirva para que a mídia MUDE sua atual abordagem do futebol. Que pare de ignorar os inumeráveis sofrimentos do torcedor, de apenas noticiar os crimes relacionados ao futebol sem cobrar permanentemente por suas resoluções, de fingir que não percebe a forçadíssima elitização do nosso esporte querido, de se omitir com os horários cada vez mais pornográficos dos jogos. Aliás, como nessa sociedade todos os processos são impostos de cima para baixo, sugiro que essa elitização do jogo venha de cima também. Ou seja, troquem quem colocou nossos clubes e federações em penúria completa por gente qualificada, estudada em gestão, em marketing, que apresente algum estudo de mercado que justifique qualquer aumento de preços nos ingressos, que não podem continuar a preços tão irrealistas, muito menos quando toda a estrutura em volta permanece igual. Elitizem a gestão do futebol primeiro! Porque me parece impossível modernizar alguma coisa exatamente com as mesmas pessoas que passaram (só no pretérito?) anos sugando, roubando e arruinando nossas entidades esportivas. Nesse caso, a elitização, vejam só, parte de baixo, isto é, primeiro atinge o torcedor, depois.... bem, depois fica por isso mesmo, como tão bem sabemos.